TAO-TE KING (Lao Tsé)

A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar é aceitável em nível de cultura primária, pois favorece a alfabetização e dispensa esforço mental – mas não é aceitável em nível de cultura superior, pois deturpa o pensamento.
Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – Criar é a transição de uma existência para outra existência.
O Poder Infinito é o creador do Universo – um fazendeiro é criador de gado.
Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores.
A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea, tudo se transforma”, esta lei está certa se grafarmos “nada se crea”, mas se escrevermos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa.
Por isso, preferimos a verdade e clareza do pensamento a quaisquer convenções acadêmicas.

Lao-Tsé

Lao significa “criança, jovem, adolescente”.
Tsé é o fluxo de muitos nomes chineses, que quer dizer “idoso, maduro, sábio”, e que corresponde ao grego “presbyteros”, que significa literalmente “ancião”, com a conotação de maduro, espiritualmente adulto.
De maneira que podemos transliterar Lao-tsé por “jovem sábio”, ‘adolescente maduro”.
Lao-tsé viveu no século VI a.C. Passou a primeira metade de sua vida – cerca de quarenta anos – na corte imperial da China, trabalhando como historiador e bibliotecário. Em muitos aforismos transparece a grande familiaridade com a situação política do Império Celestial, fazendo, por vezes lembrar Shakespeare, cujos dramas revelam as intrigas e a corrupção das cortes européias de seu tempo; como o grande escritor britânico, Lao-tsé verbera o descalabro dos governos e aponta o caminho para a sua regeneração.
Em outros aforismos, Lai-tsé desce às últimas profundezas metafísicas da Realidade Cósmica, procurando atingir a raiz do Uno para além de todas as ramificações do Verso.
Nas explicações dos aforismos fizemos ver que Lao-tsé seguia o mesmo caminho da nossa “Filosofia Univérsica”, que, embora nascida no Brasil em sua forma cristalizada, forma o background de todas as grandes filosofias da Antiguidade.
Homem de meia-idade, Lao-tsé abandonou a corte imperial e retirou-se, como eremita, para a floresta, onde viveu a segunda metade de sua longa vida, estudando, meditando, auscultando a voz silenciosa da intuição cósmica, que deixou seus reflexos no presente texto.
Finalmente, com cerca de oitenta anos, Lao-tsé cruzou a fronteira ocidental da China – e desapareceu, sem deixar vestígio de sua vida ulterior.
Ao cruzar a fronteira, encontrou-se com o guarda da divisa, que lhe pediu um resumo de sua filosofia, ao que Lao-tsé lhe entregou um pequeno manuscrito que continha a quintessência do atual Tao-te King.
O conteúdo deste pequeno manuscrito, de oitenta e um brevíssimos capítulos, consta de pequenos aforismos, muitas vezes em forma paradoxal.
Aliás, as grandes verdades se revelam quase sempre em simples epigramas, que lembram os Provérbios de Salomão e as Beatitudes do Cristo. Paradoxo, em grego, ou absurdo, em latim, quer dizer “além da mente”, “ultramental”, e designa uma verdade que a inteligência não pode alcançar nem afirmar, nem negar. Por isso dizia Tertuliano: “Credo quia absurdum”, eu aceito a realidade espiritual, porque ela é ultra-intelectual, absurda, paradoxal. O que é intelectualmente cognoscível, como as coisas do ego empírico-analítico, não é espiritual, não é absurdo.
Lao-tsé, em quase meio século de silêncio e solidão, deve ter auscultado a voz do Infinito, a alma do Universo, e tentou exprimir em conceitos mentais e palavras verbais a sua sabedoria ultramental e ultraverbal.
Quem não esteja afinado pela mesma onda cósmica não compreenderá o verdadeiro sentido da filosofia de Lao-tsé.
Lao-tsé foi contemporâneo de outro filósofo chinês, Long-fu-tsé (Confúcio), o qual elaborou uma filosofia moral-social, que não transcende o plano horizontal da vida de cada dia, mas plasmou, como nenhuma outra, a vida do povo chinês. A filosofia de Long-fu-tsé não resistiu ao impacto do comunismo de nossos dias, sucumbindo, em parte, ao ateísmo militante e ao materialismo dialético dos sovietes.
Lao-tsé professa uma sabedoria de grande verticalidade, que nunca alcançou a popularidade da filosofia de seu colega. A filosofia de Lao-tsé se parece muito com a metafísica mística da Índia.
A experiência intuitiva é jovem e bela somente no instante atômico em que nasce espontaneamente das profundezas da alma cósmica; mais tarde, quando analisada intelectualmente, murcha e é profanada – e acaba como fóssil inerte.
Por isso, somente quem vive e vivencia a silenciosa experiência de Lao-tsé pode compreender a sua sapiência cósmica. Mais importante do que qualquer ato ego-consciente é a atitude cosmo-consciente.
“A verdade”, dizia Mahatma Gandhi, “é dura como diamante, mas também é delicada como flor de pessegueiro.” Quem apenas analisa intelectualmente os aforismos filosóficos de Lao-tsé pode sentir repelido por sua dureza diamantina, mas quem sabe intuir espiritualmente a alma dessa sabedoria, esse gozará a sua delicadeza flórea.
Tao-te king convida o leitor a ser, acima de tudo, um auscultador da silenciosa alma do Universo.

“Tao-te king”

Uma vez que os chineses não escrevem com letras como nós, mas usam ideogramas para exprimir idéias, não há uniformidade nas palavras, quando reproduzidas pelos nossos símbolos alfabéticos. Lao-tse, Tao, te, king, admitem diversas grafias, como Lau-tsi, Dau, che, ching, etc.
Tao significa o Absoluto, o Infinito, a Essência, a Suprema Realidade, a Divindade, a Inteligência Cósmica, a Vida Universal, a Consciência Invisível, o Insondável, etc. Nunca representa um indivíduo, uma pessoa, como Deus nas teologias ocidentais.
Te pode ser traduzido por caminho, diretriz, revelação.
King corresponde a livro, escrito, documento.
Tao-te king pode ser traduzido por “Livro que leva à Divindade”, ou “O Livro que revela Deus”.
Na presente tradução do texto, guiamo-nos, em parte, pelos tradutores alemães Rudolf Bacjofen e Werner Zimmermann, versão que consideramos bem próxima do original.
Uma vez que a escrita chinesa usa ideogramas em vez de letras, cada palavra permite vastas possibilidades de sentidos e variantes. Basta lembrar que os referidos tradutores recorrem a mais de trinta palavras diferentes para exprimir o sentido do ideograma chinês para o Tao; não estão interessados em reproduzir o corpo da palavra, mas sim a alma do texto, de acordo com o contexto.
Na escrita ideográfica trata-se mais de sentir, adivinhar, farejar o sentido exato de cada símbolo, do que, propriamente, transliterar o respectivo ideograma.

Para compreender o Tao

Deus, Brahman, Yahveh, Força, Tao – o que se entende por esta palavra?
Para muitos, Deus é uma espécie de ditador celeste, uma pessoa que vigia os homens de longe e registra os seus créditos e débitos, premiando-os ou castigando-os depois da morte, mandando os bons para um céu eterno e os maus para um inferno eterno.
Esse infantilismo primitivo domina as teologias cristãs de dois mil anos, e, embora haja grandes variantes dessa concepção de Deus, no fundo essa idéia e antropomorfa.
Entretanto, essa concepção nada tem a ver com o Tao.
Em seu livro Mein Weltbild, Einstein descreve maravilhosamente três tipos de concepção de Deus:
1) O conceito do Deus-máquina, entre os povos mais primitivos,
2) o conceito de Deus-pessoa, entre os hebreus do Antigo Testamento, em geral, e entre os cristãos de todos os tempos e países,
3) o conceito de Deus-cósmico, professado por uns poucos místicos avançados, cujos representantes ultrapassam igrejas e teologias e se encontram esporadicamente, entre todos os povos e em todas as religiões. Einstein enumera, entre os da terceira classe, Demócrito, Francisco de Assis e Spinoza, quer dizer um pagão, um cristão e um hebreu, dizendo que eles são irmãos na fé.
Lao-tsé e seu conceito de Tao poderia ser incluído no terceiro grupo, dos místicos cosmo-sapientes.
A elite espiritual dos povos orientais e os verdadeiros místicos do Ocidente são os representantes mais avançados da cultura espiritual da humanidade; todos eles professam a idéia do Deus-cósmico. Não são politeístas, nem panteístas, nem mesmo monoteístas – são monistas cósmicos.
O monoteísta reconhece um só Deus pessoal, residente no céu. Os hebreus, no tempo de Moisés, nunca chegavam à idéia de um Deus único para Israel, o Deus dos Exércitos. O monoteísmo nunca atingiu as alturas do verdadeiro monismo. Todo monoteísta é dualista, isto é, admite a existência de um Deus transcendente, de um Deus-pessoa, residente em alguma região longínqua do cosmos, com o qual o homem espera encontrar-se depois da morte.
Esse conceito do encontro com Deus num tempo futuro e num espaço distante é comum a todos os monoteístas. Essa concepção monoteísta-dualista de Deus contagiou, desde o princípio, o cristianismo ocidental o que é perfeitamente compreensível, uma vez que os primeiros discípulos de Jesus vieram do judaísmo. Até hoje o cristianismo teológico do Ocidente não se libertou totalmente dessa herança. Os místicos cristãos, adeptos do monismo cósmico, foram por isso mesmo perseguidos, excomungados, ou, pelo menos, considerados suspeitos de heresia. Quando uma criança pensa em termos de adulto, deixa de ser criança, e os jardins de infância a expulsam como elemento estranho.
Quanto mais o homem se cosmifica ou universifica, tanto menos unilateral se torna, e tanto mais unilateral é a sua sabedoria. A luz colorida em seu modo de pensar humano revela a luz incolor de sua experiência divina, origem de todas as cores.
Para o monista cósmico, Deus é a Realidade Una e Única, o grande Uno da Essência, que sempre de novo se revela através da pluralidade das existências, através do Verso das creaturas. As creaturas não são novas realidades, mas apenas novas manifestações da única Realidade; são o Uno da Essência Infinita que se “verte” (verso) ou esparrama no Verso das existências finitas.
Em face da onipresença do Infinito é evidente que todos os finitos estão presentes no Infinito e o Infinito está presente em todos os finitos.
O monismo, assim concebido, é rigorosamente lógico, e revela uma acribia de precisão matemática.
Toda filosofia ou sabedoria superior culmina infalivelmente no monismo cósmico, eqüidistante do dualismo separatista e do panteísmo identificador. Para o monista, tudo está em Deus, e Deus está em tudo – mas tudo não é Deus, nem Deus é tudo; as creaturas não estão separadas de Deus, nem são idênticas a Deus.
Todos os verdadeiros gênios da humanidade pensavam e sentiam em termos de monismo cósmico, cujo exemplo mais brilhante é o Cristo do Evangelho.
E como poderia Lao-tsé, o grande gênio da sabedoria chinesa, ter pensado e sentido de outro modo? Através dos oitenta e um capítulos brevíssimos do Tao-te king, se lança, como um fio de luz, a experiência do Infinito, do Absoluto, do Uno, que se manifesta através dos Finitos, dos Relativos, do Verso.
A sabedoria de Lao-tsé é tipicamente univérsica: do Uno emana o Verso; o Verso está no Uno, e, embora o Uno do Infinito transcenda todo o Verso dos Finitos, contudo estes estão imanentes naquele.
O Tao, em torno do qual gira esse tema, pode ser considerado como sendo a Divindade, o Absoluto, o Infinito, o Eterno, o Insondável, o Uno, o Todo, a fonte, a Causa, a Realidade, a Alma do Universo, a Vida, a Inteligência Cósmica, a Consciência Universal, etc.
Enquanto o leitor não se identificar totalmente com essa consciência univérsica do monismo cósmico de Lao-tsé, não compreenderá a alma do Tao-te king.

O “tei-gi”

A bipolaridade complementar do Cosmos, que permeia toda a filosofia de Lao-tsé, é maravilhosamente simbolizada pelo antiqüíssimo diagrama chinês tei-gi.
Analisando a gênese desse símbolo, podemos dizer: o círculo incolor e vácuo representa a TESE do Absoluto, Brahman, a Divindade, como o puro Ser:
Este círculo incolor é indefinido do Absoluto, evolve rumo aos Relativos do Devir, aparecendo como positivo e negativo, yang e yin, masculino e feminino, céu e terra; o simples Ser de Brahman se tornou o Creador Brahma, iniciando o drama da evolução:
Estas duas Antíteses amadurecem na Síntese, rumo à Tese inicial, integrando-se nela sem se diluir na mesma – de maneira que a Tese Cósmica, passando pelas Antíteses Telúricas, culmina na Síntese Cosmificada.
E o que se dá automaticamente no Cosmos Sideral pode acontecer espontaneamente no Cosmos Hominal, pelo poder creador do livre-arbítrio humano:
O tei-gi simboliza a quintessência da filosofia de Lao-tsé, o alfa e ômega de Tao e da mentalidade chinesa, que coincide, basicamente, com a nossa Filosofia Univérsica.

Nota: Texto baseado no livro Tao te king, de Lao-tsé, traduzido por Huberto Rohden.
http://www.ocaminhodomeio.com.br/taoteking/index.html